terça-feira, 31 de julho de 2012

Sergio Marques Velloso


Chuva

Enquanto a chuva
Com sua língua fria
Lambe a cidade,
Desliza
Segundo a segundo;
E o tempo goteja,
Tic tac, Tic tac, Tic tac.
Os jovens:
Disputam em chutes
Do sonho, a glória,
O gosto de vitória,
No sagrado, gol!
Ou, no vestido irresistível,
O acaso
Que lhe traga
No resolutivo abraço
O beijo
De novela
De um final feliz.

Enquanto a chuva
Persiste
Os sonhos se edificam
A comunicação se estreita
Teia mágica
De bem ou mal

Ondas
E ondas
De um único mar
Trama macia
De um mesmo lençol

E o tempo,  na primeira fila
Apenas
Assiste
Ato por ato
Pétala por pétala
De uma mesma flor,
Doces, puras,
Bizarras
Românticas
Tímidas
Arrogantes
Manipuladas
Ou prostitutas
Formas de amor.


Autor: Sergio Marques Velloso
Casa do Poeta Brasileiro de Praia Gande
velloso.arteblog.com.br    

poetas colaboradores.




Cadinho Antony

Tem dia que a vida
Se sente mal.
É um enjoar
A fustigar o corpo.

Ora uma lapada de cansaço
Fazendo doer as pernas
Ora uma tristeza
Invade o coração.

Avivando lembranças que vão,
Empurrando na mente
Saudades felizes transformadas em melancólicas.

E ao se olhar no espelho,
Os olhos opacos
Denuncia a proximidade da chegada do nunca mais


poetas colaboradores,





BANHEIROS PARALELOS

                                                                     Conto


No banheiro dos homens, se conversa com muita objetividade (quando se conversa). Os homens não levam bolsas, não retocam maquiagem e dificilmente cagam. Por isso o tempo que se gasta lá é muito curto, Mal balançamos o pinto direito.
-Então, Carlão! Vai comer a loirinha, mesmo? Perguntou o primo do interior de São Paulo, que estava a passeio na cidade, mudando o saco para o outro lado da cueca.
-Cara, sei lá! Tô com vontade de traçar a japonesinha mesmo.  A loirinha tá fazendo cu doce. Não quero perder muito tempo hoje. Amanhã aquele filho da puta do chefe vai para o escritório bem cedo. Só quero da uma trepada bem rápida e sair fora.
-Eu estou de férias mesmo, vou ficar por aqui e ver se pego uma melhor que a tua, Não como japa. Não desce nem fudendo.
- Se liga cara, a japa é mó gostosinha.. Ei, lava a mão cuzão!  Tá de sacanagem!, Já pensou essa mão cheirando a mijo. Se toca “Chico bento”, as mina se liga nisso.

...Olhar de desprezo...
No banheiro das mulheres, o tempo é ignorado, como em muitos outros lugares.  Existem tantas coisas para ser feito entre um xixi e uma retocada no batom que precisam sempre de testemunhas, alguém que concorde com o que fazem. Nunca estão sozinhas.
-Você viu aqueles músculos menina! que tesão de caipira. Ele andou me medindo, quando eu estava dançando. Não sei não! Mas eu acho que eu estou precisando de alguma coisa mais rustica, meio animal hoje. Ah! eu pegava com certeza. Amanhã cedo viajo para a filial em Tóquio, vou dá em cima agora, marcar território, vou dá pra ele de qualquer jeito.
-Luísa, você está terrível hoje! Que isso, esta parecendo puta. Segura a periquita, mulher! Vamos com calma, o cara vai ficar uns tempos por aqui, você volta na sexta. Vai pegar mal, dá logo de cara.

Risos...

-Que isso Ana! Virou a Madre Tereza!  Estou precisando esquecer o Tiago, aquele viado filho da puta, depois que ele me deu o pé na bunda, nunca mais dei pra ninguém.
-A vá!  Jura! Sério, menina! Não acredito. E o tal do Luís, eu vi vocês dois juntos varias vezes.
- Xii, babado forte mulher! O cara tem o pinto cheio de verrugas, num rolou nada. O coitado é lindo, mas sem uma ferramenta de grife é foda. Passei mal naquele motel, que foi caro pra caralho! Pior depois foi ficar consolando ele, dizendo que a culpa era minha e que eu era cheia de frescura e que tinha pesadelos desde menina com verrugas, essa coisa de trauma e tal, o cara ficou meio prá baixo, mas, porra! toma no cu! Com um pau destes não rola, o pior é que estas coisas tem cura. O cara é muito relaxado mesmo, ah! ele que se foda! Bonito de pau esquisito!!

Risos de novo.....

- Que azar né! Não era para dar em nada mesmo, mas só por isso você não vai sair por aí dando pro primeiro que aparecer, calma, tem muito homem ainda neste mundo.
-Será? Cada dia eu conheço um viado novo.
- É verdade! eu também.
Risos de novo...

-Você acha que eu devo retocar o loiro?  Eu estou sentindo ele opaco, sem vida...
- Que isso menina! Ele tá lindo, olha só como ele tá leve, brilhante... tá combinando com a bolsa, aliás, que bolsa linda, Jú, aonde você comprou? arrasou, me conta.
- Nem te conto gata. Ganhei de um cara que você ainda não conhece. Um puta negrão alto e gostoso, to dando pra ele de vez em quando, ele tá viajando esta semana, tá meio enrolado com uns problema da  família dele lá do Paraná, o cara tem bom gosto olha só que linda esta bolsa!
- Linda demais. Amei, mas eu não curto negros, você sabe né!  Gosto de pinto normal. Pinto muito grande me estraga, fico toda arrebentada, tô fora!
- É normal menina!, tamanho certo. Acho que uns 16 ou 17, além do mais é todo perfumado, malhado, gostoso pra caramba. Só tem um problema, ele não gosta muito de chupar, fica socando muito, quase o tempo todo. Cansa muito e demora demais pra gozar. Ah! que saudades do Felipe, aquele sim, tinha "o dom", era foda, dava um trato do caralho! mas quem não tem cão caça com gato né!!.

Risos de novo..

-Vamos embora menina, os rapazes devem estar preocupados com a gente.
-Que nada, relaxa! Eles estão falando de futebol ou de carro, eles só sabem falar disso...
-É mesmo,
-Espera um pouco, enfia um pouco mais esta calcinha no cu, tá parecendo minha tia!  Assim o teu negão vai lamber a sua buceta mesmo!

Risos de novo....


Marcos Tavares de Souza
Escreve aqui quando 
não tem nada que fazer.


Clarice Lispector



Perdoando Deus

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia — e não possivelmente um equívoco de sentimento — que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar — não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele — mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria — e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escadalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.



Duílio Gomes



O Ovo com solenidade

O cego estava quebrando o ovo  para fazer omelete quando o porco entrou na cozinha. Sentiu-o aos seus pés; em silêncio, cheirava os seus pés. O cego estava de sandálias e a saliva do porco era uma coisa quente e líquida molhando o seu calcanhar direito. Os músculos do cego se retesaram. Sua mulher e sua filha haviam saído. Elas sabiam do grande medo que ele tinha de porcos e por isso os trancavam no chiqueiro. O cego percebeu, dentro da névoa do seu medo, que eles haviam arrebentado as tábuas podres do chiqueiro e saído. A mulher já o havia advertido: "As tábuas do chiqueiro estão podres. Precisamos trocá-las.” Eram três porcos gordos e espremidos no chiqueiro cujas tábuas iam apodrecendo debaixo das chuvas e dos carunchos. Viviam alucinados pelo calor, engordando e envelhecendo com as moscas que lhes trepavam nos lombos. O cego estava sempre adiando a data de matá-los — esperava uma visita importante qualquer, já não sabia há quanto tempo eles estavam em sua casa. Só sabia de sua aversão por eles e de uma iminente visita importante, quando então os mataria. Havia deixado a casca do ovo cair no chão e o porco agora a comia.

Pelo menos enquanto ele come não se lembra de mim, pensou. Os velhos e agudos dentes do porco trituravam a casca e o cego pensou então que aqueles dentes, apesar de velhos, rasgariam a carne de suas pernas como se elas fossem manteiga. Tinha tanto medo do porco morder as suas pernas que elas não obedeciam ao seu intenso desejo de correr, e permaneciam fincadas no chão, expostas aos agudos dentes velhos do porco que agora, pelo silêncio, o cego sabia ter terminado de comer a casca do ovo e começava a cheirar o ar com seu largo, sujo e enrugado focinho de porco velho. As tábuas da escada que dava do quintal para a cozinha rangeram. Estão subindo os outros, pensou o cego e o seu terror nesse momento foi tão intenso que ele sentiu, no escuro poço de sua vertigem, as pernas bambearem. Não posso cair, murmurou, não posso cair. Como um soco em sua memória, o aviso da mulher: só chegaremos à noite. Haviam saído, ela e a filha, para visitar uma parenta doente e o cego se rendeu, subitamente, à dolorosa realidade — ter de permanecer durante longo tempo como um monumento lívido e frágil em meio aos porcos. Eles agora rodeavam as suas pernas, grunhindo. Misturado aos seus roncos, que ecoavam na cozinha como a nota mais grave de um instrumento de sopro, o cheiro enjoativo do ovo sobre o prato. O cego lembrou-se, com uma ponta de desespero, da omelete que nunca comeria e então fez o gesto que talvez o salvasse da fome e do ódio dos seus porcos: com as mãos trêmulas derramou o ovo no chão. Foi um gesto mecânico e tateante mas, que inaugurou nele uma certa paz — os porcos lambiam o ovo no chão e isso era a trégua; enquanto eles se alimentavam não se lembrariam de suas pernas.

Sua mulher tinha o costume de deixar os mantimentos sobre a pia, na frente da qual se encontrava, e ele tentava agora localizá-los. Sabia que a menina havia feito a feira naquela manhã e que enquanto entregava os mantimentos para a mãe, ia nomeando-os. Estava tudo na sua frente, além do vácuo negro dos seus olhos. Precisava detectar os mantimentos e com eles saciar a dura fome dos porcos. Apalpando a superfície úmida da pia, seus dedos tocaram num objeto morno. Era um objeto morno e redondo, com uma haste encimando-o. Abóbora, pensou, e puxou-a pela haste. O ruído seco da abóbora caindo no chão foi o ruído de uma abóbora que se partia e que se ofertava, amarela e luminosa, à avidez dos porcos. O ruído que se seguiu ao da abóbora se partindo foi o ruído dos porcos mastigando. Mastigavam com pressa e grunhiam. Havia satisfação nos seus grunhidos. O cego, então, com uma escura dificuldade, foi localizando e atirando ao chão o arroz, os quiabos, a couve, até que, não encontrando mais nada para atirar, escutou: a bolha de saliva arrebentando. Pelo denso silêncio que subia do chão ele entendeu que a bolha de saliva fora o final do festim. Entendeu também, com a profunda e mágica percepção dos cegos, que os porcos ainda não estavam saciados. E que o rodeavam, pensativos, os olhos fixos em suas pernas.


Ambrose Bierce



O Rastro de Charles Ashmore


A família de Christian Ashmore consistia em sua mulher, sua mãe, duas filhas crescidas e um filho de dezesseis anos. Moravam todos em Troy, Nova York, eram pessoas de bom nível, respeitadas, e tinham muitos amigos, alguns dos quais, lendo estas linhas, ouvirão falar pela primeira vez da história extraordinária ocorrida com o rapaz. Os Ashmores se mudaram de Troy para Richmond, Indiana, em 1871 ou 1872, seguindo, um ou dois anos depois, para os arredores de Quincy, Illinois, onde o Sr. Ashmore comprou uma fazenda e se instalou. A pouca distância da sede da fazenda havia uma fonte de água limpa e fresca, que a família usava para suprir suas necessidades durante o ano inteiro.
Na noite de 9 de novembro de 1878, lá pelas nove horas, o jovem Charles Ashmore deixou a família reunida em casa e, levando uma pequena jarra, saiu em direção à fonte. Como demorava a voltar, a família ficou inquieta, e o pai, indo até a porta por onde o rapaz saíra, chamou por ele sem obter resposta. Acendeu então uma lanterna e, junto com a filha mais velha, Martha, que insistiu em acompanhá-lo, saiu à procura. Naquela noite havia caído um pouco de neve, que cobria o caminho mas deixava evidente a trilha feita pelo rapaz. Cada pegada era perfeitamente visível. Quando eles já haviam percorrido pouco mais do que a metade do caminho — cerca de sessenta metros —, o pai, que ia na frente, estacou e, erguendo a lanterna, ficou espiando a escuridão à sua frente.
"O que houve, pai?", perguntou a moça.
O que havia era o seguinte: a trilha do jovem terminava de repente e dali para a frente a neve fofa estava intocada. As últimas pegadas eram tão visíveis quanto as anteriores, sendo possível mesmo distinguir a marca da ponta dos dedos. O Sr. Ashmore olhou para cima, usando o chapéu de anteparo para que a luz da lanterna não o ofuscasse. As estrelas brilhavam. Ficou assim afastada a hipótese que chegara a lhe ocorrer, por mais improvável que fosse, de que houvesse caído neve outra vez, e só dentro de um limite tão bem definido. Seguindo um caminho maior e rodeando o local onde estavam as últimas pegadas, de forma a deixá-las intocadas para voltar a examiná-las mais tarde, ele foi até a fonte, enquanto a moça seguia atrás, sentindo-se fraca e apavorada. Nenhum dos dois disse uma só palavra sobre o que tinham visto. A fonte estava coberta de gelo, obviamente endurecido havia muitas horas.
Voltando para casa, observaram a neve de ambos os lados, ao longo de todo o caminho. Não havia qualquer marca de pegadas afastando-se da trilha.
A luz do dia não trouxe qualquer nova evidência. Por toda parte havia neve, não muito profunda. E sempre macia, sem marcas, intocada.
Quatro dias depois, a mãe, arrasada, foi até a fonte em busca de água. Ao voltar, contou que, quando passava pelo local onde tinham sido vistas as últimas pegadas, ouvira a voz do filho e saíra, desesperada, chamando por ele, andando a esmo pelo lugar, já que a cada momento tinha a impressão de ouvir a voz vindo de uma diferente direção. Até que não agüentara mais, vencida pelo cansaço e pela emoção. Quando lhe perguntaram o que a voz falava, não conseguiu dizer, embora asseverasse que as palavras eram perfeitamente audíveis. Imediatamente, toda a família foi até o local, mas ninguém ouviu nada e a conclusão foi a de que tudo não passara de uma alucinação causada pela ansiedade da mãe e por seus nervos destroçados. Acontece que nos meses seguintes, com intervalos irregulares de alguns dias, a voz foi ouvida por todos os membros da família, e também por outras pessoas. Todos declararam estar absolutamente certos de que era a voz de Charles Ashmore, e todos concordaram que o som parecia vir de muito longe, fraco, mas articulado de forma perfeitamente audível. E, contudo, ninguém foi capaz de precisar de que direção vinha o som ou de repetir as palavras ditas. Os intervalos de silêncio foram aos poucos tornando-se mais longos, e a voz ficando mais fraca e distante, até que, no verão, parou de ser ouvida.
Se alguém conhece o destino de Charles Ashmore, esse alguém provavelmente é sua mãe. Ela está morta.

Ivan Junqueira



Esse punhado de ossos 


O carro dobrou na Cesário Mota Jr., e Cibele logo percebeu que era o homem esquisito. Já passava de seis meses agora. Toda semana. Toda sexta-feira à noite. Nove horas em ponto o sujeito aparecia. Banho tomado, roupa passada. Ele vinha escorregando com o carro pro lado dela. Parava, mas deixava o motor ligado. Destravava a porta. Às vezes dizia alguma coisa.
— Boa noite.
— Boa.
Às vezes, nem isso... Mas sempre aquele cheiro de água de colônia. Enjoativo. Cibele sentia falta de ar. Procurava pelo botão do vidro. Não achava. Não tinha coragem de perguntar onde ficava. Contava até dez. Passava.
— Aposto que eu sei onde a gente vai...
O homem fez que sim com a cabeça. Ele a levava pra comer frango à passarinho com caipirinha em Pinheiros. Bebiam e comiam em silêncio aquelas irresistíveis desgraças cheias de gordura até perderem o juízo. Ela não conseguia se controlar. Depois pediam sobremesa. Ela simplesmente não conseguia se controlar! E ainda tomavam cafezinho:
— Sem açúcar, por favor...
Ele pagava e a deixava no mesmo lugar. Pagava o preço mais caro. Perguntou na primeira vez:
— Quanto é pra fazer tudo?
Ela caprichou. Ele tirou o dinheiro do bolso. Não tinha muito mais do que ela pedira, mas fez questão de acertar antes. De lá pra cá era sempre igual. Uma vez perguntou:
— Teve aumento?
Cibele não teve coragem. Pediu o de sempre.
Portanto ele podia fazer tudo o que quisesse, mas sempre a devolvia na mesma esquina. "Sem um arranhão!", como costumava dizer às amigas. Toda semana. Toda sexta-feira, entre 11 e 11 e meia estava de volta ao ponto. Menos mal, pensava a mulher, que ainda contava com todo o movimento da madrugada pra aproveitar. Aproveitava mesmo, que Cibele não fazia questão de prestar e tinha muitos planos; mas aquele homem... Não sabia se tinha vergonha... Ou pena. O coração dela ficava espremido. Ruminava as razões dele. Passava a semana com esse troço por dentro. Não chegava a lugar nenhum.
Até esse dia tinha ficado quieta, mas, no restaurante, quando ele perguntou o que ela queria, Cibele pôs a língua pra fora e disse:
— Você.
O garçom se fez de morto. Era um bom garçom. Ficou brincando de estátua com a caneta e o bloquinho. Passou um bom tempo assim, porque o homem deu uma risada comprida e só então virou pra pedir:

— Duas caipirinhas de pinga e um frango à passarinho.

O garçom se afastou e a mulher continuou provocando:

— Você gosta de beber, né?

— É bom, fica tudo mais fácil...

— Devia comer de vez em quando.

Dessa vez o homem não riu.

— Você é casado?

— Hum-hum.

— Mentira. Se fosse casado a tua mulher ia desconfiar da rotina.

— Não é uma questão de confiança.

— Ela é doente?

O homem voltou a rir.

— Você é doente?

— Não.

— Gay?

Chegou o pedido. Cibele ficou desacorçoada. Costumava dizer que se um dia fosse executada, frango à passarinho seria sua última refeição. Tentou escolher um pedaço bem sequinho. Difícil. Ficou mordiscando. Depois pegou mais. E foi pegando, querendo morrer. Seus lábios brilhavam quando perguntou:

— Eu não sou boa pra você?

O homem teve a coragem de fazer Cibele esperar que pegasse um cigarro do maço, tirasse caixa de fósforos do bolso da calça, um palito de dentro dela, acendesse esse maldito cigarro e só então se dignasse a responder:

— Você é a melhor coisa da minha semana.

— "Coisa"?!

O homem bufou diante da mulher, levantou a palma da mão pro garçom e fez que escrevia nela com um dedo. Cibele ficou pescando os restinhos de alho da bandeja.

— Você me engorda.

Cibele fechou a cara. De cara fechada esperou que o homem pagasse a conta e a levasse de volta à esquina de sempre. Nessa noite Cibele não sentiu o enjôo da água de colônia quando ele se debruçou nela pra destravar a porta. Desceu e ficou de costas. O homem baixou o vidro. "Aqueles botões...”

— Até sexta-feira...

Cibele pensou em ofender, mas quando virou, aquele homem esquisito estava bem ali... Ela sem saber se era vergonha ou pena... O coração espremido...

— Tá bom, te espero aqui.




segunda-feira, 30 de julho de 2012

Manoel de Barros


O Apanhador de desperdícios

Jorge Luis Borges


Emma Zunz 


No dia 14 de janeiro de 1922, Emma Zunz, ao voltar da fábrica de tecidos Tarbuch e Loewenthal, encontrou no fundo do vestíbulo uma carta, datada do Brasil, pela qual soube que seu pai tinha morrido. Enganaram-na, à primeira vista, o selo e o envelope; depois, inquietou-a a letra desconhecida. Nove ou dez linhas mal traçadas quase enchiam a folha; Emma leu que o senhor Maier tinha ingerido por engano uma forte dose de veronal e tinha falecido a 3 do corrente no hospital de Bagé. Um companheiro de pensão de seu pai assinava a notícia, um tal Fein ou Fain, de Rio Grande, que não podia saber que se dirigia à filha do morto. Emma deixou cair o papel. A primeira sensação foi de mal-estar no ventre e nos joelhos; depois, de cega culpa, de irrealidade, de frio, de temor; depois, quis já estar no dia seguinte. Imediatamente, compreendeu que essa vontade era inútil, porque a morte de seu pai era a única coisa que tinha sucedido no mundo e que continuaria sucedendo para sempre. Pegou o papel e foi para o quarto. Furtivamente, guardou-o na gaveta, como se, de alguma forma, já conhecesse os fatos ulteriores. Talvez já começasse a vislumbrá-los; já era a que seria. Na crescente escuridão, Emma chorou até o fim daquele dia o suicídio de Manuel Maier, que nos velhos dias felizes fora Emanuel Zunz. Recordou veraneios numa chácara, perto de Gualeguay, recordou (procurou recordar) sua mãe, recordou a casinha de Lanús que lhes arremataram, recordou os amarelos losangos de uma janela, recordou o auto de prisão, o opróbrio, recordou as cartas anônimas com o comentário sobre "o desfalque do caixa", recordou (mas isso ela nunca esquecia) que seu pai, na última noite, jurara que o ladrão era Loewenthal.  Loewenthal, Aaron Loewenthal, antes gerente da fábrica e agora um dos donos. Emma, desde 1916, guardava o segredo. A ninguém o revelara, nem sequer a sua melhor amiga, Elsa Urstein. Talvez evitasse a profana incredulidade; talvez acreditasse que o segredo fosse um vínculo entre ela e o ausente. Loewenthal não sabia que ela sabia; Emma Zunz tirava desse fato ínfimo um sentimento de poder. Não dormiu àquela noite, e, quando a primeira luz definiu o retângulo da janela, já estava perfeito seu plano. Procurou fazer com que esse dia, que lhe pareceu interminável, fosse como os outros. Havia na fábrica rumores de greve; Emma, como sempre, declarou-se contra qualquer violência. As seis, concluído o trabalho, foi com Elsa a um clube para mulheres, com ginásio e piscina. Inscreveram-se; teve que repetir e soletrar seu nome e sobrenome, teve que achar graça das brincadeiras vulgares com que é comentado o exame médico. Com Elsa e com a mais moça das Kronfuss discutiu a que cinema iriam no domingo à tarde. Depois, falou-se de namorados e ninguém esperou que Emma falasse. Completaria dezenove anos em abril, mas os homens lhe inspiravam ainda um temor quase patológico... Na volta, preparou uma sopa de tapioca e uns legumes, comeu cedo, deitou-se e obrigou-se a dormir. Assim, laboriosa e trivial, passou a sexta-feira, dia 15, a véspera. No sábado, a impaciência despertou-a. A impaciência, não a inquietude, e o singular alívio de estar finalmente naquele dia. Já não tinha que tramar e imaginar; dentro de algumas horas, atingiria a simplicidade dos fatos. Leu em La Prensa que oNordstjärnan de Malmö, zarparia nessa noite do cais 3; telefonou para Loewenthal, insinuou que desejava comunicar, sem que as outras soubessem, algo sobre a greve e prometeu passar pelo escritório, ao anoitecer. Tremia-lhe a voz; o tremor convinha a uma delatora. Nenhum outro fato memorável ocorreu nessa manhã. Emma trabalhou até as doze e marcou com Elsa e com Perla Kronfuss os pormenores do passeio de domingo. Deitou-se depois de almoçar e recapitulou, de olhos fechados, o plano que tramara. Pensou que a etapa final seria menos horrível que a primeira e que lhe proporcionaria, sem dúvida, o sabor da vitória e da justiça. De repente, alarmada, levantou-se e correu à gaveta da cômoda. Abriu-a; debaixo do retrato de Milton Sills, onde a deixara na noite anterior, estava a carta de Fain. Ninguém podia tê-la visto; começou a ler e rasgou-a. Narrar com alguma realidade os fatos dessa tarde seria difícil e talvez improcedente. Um atributo do infernal é a irrealidade, um atributo que parece diminuir seus terrores e que talvez os agrave. Como tornar verossímil uma ação na qual quase não acreditou quem a executava, como recuperar esse breve caos que hoje a memória de Emma repudia e confunde? Emma vivia em Almagro, na rua Liniers; consta-nos que nessa tarde foi ao porto. Talvez no infame Paseo de Julio se tenha visto multiplicada em espelhos, anunciada por luzes e despida pelos olhos famintos, porém mais razoável é conjeturar que a princípio errou, inadvertida, pela indiferente galeria... Entrou em dois ou três bares, viu a rotina ou os modos de outras mulheres. Por fim, deu com homens do  Nordstjärnan.Temeu que um deles, muito jovem, lhe inspirasse alguma ternura e optou por outro, talvez mais baixo que ela e grosseiro, a fim de que a pureza do horror não fosse diminuída. O homem conduziu-a a uma porta e depois a um turvo saguão e depois a uma escada tortuosa e depois a um vestíbulo (em que havia uma vidraça com losangos idênticos aos da casa em Lanús) e depois a um corredor e depois a uma porta que se fechou. Os fatos graves estão fora do tempo, seja porque neles o passado imediato fica como que separado do futuro, seja porque não parecem consecutivas as partes que os formam. Naquele tempo fora do tempo, naquela desordem caótica de sensações desconexas e atrozes, Emma Zunz pensou uma única vez no morto que motivava o sacrifício? Tenho para mim que pensou uma vez e que nesse momento correu perigo seu desesperado propósito. Pensou (não pôde deixar de pensar) que seu pai tinha feito a sua mãe a coisa horrível que lhe faziam agora. Pensou com débil assombro e se refugiou, em seguida, na vertigem. O homem, sueco ou finlandês, não falava espanhol; foi um instrumento para Emma como esta o foi para ele, mas ela serviu para o gozo e ele para a justiça. Quando ficou sozinha, Emma não abriu em seguida os olhos. Na mesa-de-cabeceira estava o dinheiro deixado pelo homem. Emma sentou-se e o rasgou como antes rasgara a carta. Rasgar dinheiro é uma impiedade, como jogar fora o pão; Emma arrependeu-se, tão logo o fez. Um ato de soberba, e naquele dia... O medo perdeu-se na tristeza de seu corpo, no asco. O asco e a tristeza prendiam-na, mas Emma lentamente se levantou e começou a vestir-se. No quarto não restavam cores vivas; o último crepúsculo se adensava. Ela pôde sair sem que a percebessem; na esquina, pegou um Lacroze que ia para o oeste. Escolheu, conforme seu plano, o banco mais da frente para que não lhe vissem o rosto. Talvez atenha consolado verificar, no insípido movimento das ruas, que o acontecido não contaminara as coisas. Passou por bairros decrescentes e opacos, vendo-os e esquecendo-os no ato, e desceu numa das esquinas de Warnes. Paradoxalmente, seu cansaço vinha a ser uma força, pois a obrigava a concentrar-se nos pormenores da aventura e lhe ocultava o fundo e o fim. Aaron Loewenthal era, para todos, um homem sério; para seus poucos íntimos, um avarento. Vivia nos altos da fábrica, sozinho. Estabelecido no desmantelado arrabalde, temia os ladrões; no pátio da fábrica havia um grande cachorro e na gaveta do escritório, ninguém o ignorava, um revólver. Chorara com decoro, no ano anterior, a inesperada morte da mulher – uma Gauss, que lhe trouxe um bom dote! –, mas o dinheiro era sua verdadeira paixão. Com íntima vergonha, sabia ser menos apto para ganhá-lo que para conservá-lo. Era muito religioso; acreditava ter com o Senhor um pacto secreto, que o eximia de agir bem a troco de orações e devoções. Calvo, corpulento, enlutado, de óculos escuros e barba ruiva, esperava de pé, junto à janela, a informação confidencial da operáriaZunz. Viu-a empurrar a grade (que ele deixara entreaberta, de propósito) e cruzar o pátio sombrio. Viu-a dar uma pequena volta quando o cachorro amarrado latiu. Os lábios de Emma se atarefavam como os de quem reza em voz baixa; cansados, repetiam a sentença que o senhor Loewenthal ouviria antes de morrer. As coisas não ocorreram como previra Emma Zunz. Desde a madrugada anterior, sonhara, muitas vezes, apontando o firme revólver, forçando o miserável a confessar a miserável culpa e expondo o corajoso estratagema que permitiria à justiça de Deus triunfar sobre a justiça humana. (Não por medo, mas por ser um instrumento da Justiça, ela não queria ser castigada.) Depois, um só balaço no meio do peito rubricaria a sorte de Loewenthal. Mas as coisas não ocorreram assim. Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgência de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje sofrido por isso. Não podia deixar de matá-lo, depois dessa minuciosa desonra. Tampouco tinha tempo a perder com teatralidades. Sentada, tímida, pediu desculpas a Loewenthal, invocou (à maneira de delatora) as obrigações da lealdade, pronunciou alguns nomes, deu a entender outros e calou-se como se o medo a vencesse. Conseguiu que Loewenthal saísse para buscar um copo d’água. Quando ele, incrédulo de tal agitação, mas indulgente, voltou da sala de jantar, Emma já tinha tirado da gaveta o pesado revólver. Apertou o gatilho duas vezes. O considerável corpo caiu como se os estampidos e a fumaça o tivessem rompido, o copo se partiu, o rosto olhou-a com assombro e cólera, a boca injuriou-a em espanhol e em iídiche. Os palavrões não cessavam; Emma teve de fazer fogo outra vez. No pátio, o cachorro acorrentado pôs-se a ladrar, e uma efusão de sangue repentino brotou dos lábios obscenos e manchou a barba e a roupa. Emma iniciou a acusação que tinha preparada ("Vinguei meu pai e não me poderão castigar..."), mas não a concluiu, porque o senhor Loewenthal já estava morto. Não soube nunca se ele chegou a compreender.  Os tensos latidos lembraram que ela não podia, ainda, descansar. Desordenou o divã, desabotoou o paletó do cadáver, tirou-lhe os óculos salpicados e deixou-os sobre o fichário. Em seguida, pegou o telefone e repetiu o que tantas vezes repetiria, com essas e com outras palavras: "Aconteceu uma coisa  inacreditável ...O senhor Loewenthal me fez vir com o pretexto da greve...Abusou de mim, eu o matei..."A história era inacreditável, de fato, mas se impôs a todos, pois substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que padecera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios


domingo, 29 de julho de 2012

Lourenço Diaféria



Nunca deixe seu filho mais confuso que você


De manhã, na copa. O pai mexe o café na xícara. O filho caçula vem da sala, dispara:

— Pai, o que é genitália? O homem volta-se:
— Ge... o quê?

— Genitália.

— Onde é que você tirou isso, da sua cabeça?

— Tá no jornal, pai.

— Genitália, no jornal? Bem, esse assunto não é comigo agora. Já estou atrasado pro trabalho. Cadê sua mãe? Rita! Ritinhaaaaa! Onde é que essa mulher se enfiou? Rita, venha ouvir aqui o que seu filho está aprontando.

Dona Rita desce esbaforida:

— Algum problema, Gervásio?

— Problema nenhum. O garoto está apenas querendo saber o que é genitália. Explique pra ele. Estou de saída.

— Genitália? Eu? Isso é conversa de homem pra homem. Vai dizer que você não sabe?

— Saber eu sei, lógico. Mas há coisas que a gente sabe o que é na teoria, mas fica difícil de explicar na prática.

— Deixa de bobagem.

— Tá bom. Depois, se eu pegar trânsito, quero só ver.

— Pode deixar, pai. Não precisa ficar discutindo você e a mamãe por causa de uma palavra. Eu pergunto pra tia da escola.

— Tá louco? A tia pode pensar mal da gente. Deixa comigo. Presta atenção: genitália é o mesmo que partes pudendas. Genitália é uma coisa muito antiga. Já existia no tempo do seu bisavô. No século passado, quando seu bisavô estava vivo, as pessoas tinham pudor. Elas ocultavam do público certas partes do corpo. Chegavam até ao exagero. As partes que ficavam mais resguardadas formavam, exatamente, a genitália. A genitália eram as partes pudendas.

— O umbigo era genitália, pai?

— Não. Na verdade, não era. Vou tentar explicar melhor. As pessoas tinham vergonha de mostrar o corpo. E uma certa parte do corpo era reservada ao extremo. Não aparecia nem em filme francês. As pessoas chamavam esse território misterioso de vergonhas. Isso é que é a genitália moderna.

— Bumbum é genitália, pai?

— Não. Acho que não estou sendo muito claro. Ritinha, você não quer dar uma mão?

— Não. Assuma.

— Bom, vou pras cabeças. Ahnnn. Hummmm. Abaixe as calças. Mais. Até os tornozelos. Isso. Pronto, tá aí a genitália.

— O umbigo?

— No térreo do umbigo. Que é que você vê embaixo do umbiguinho?

— Pô, pai. Vai dizer que o senhor não sabe o que é isso? É meu bingolim, pai.

— Ta aí. O bingolim é a genitália do homem.

— Puxa, o senhor podia ter falado antes.

— Na vida, às vezes é preciso usar eufemismos. Por exemplo, a genitália da mulher tem um nome delicado, leve, ágil. Sabe o que estou querendo dizer, não sabe? Começa com b.

— Barata da vizinha?

— Não, filho. Borboleta.